terça-feira, 2 de abril de 2019

Estigma e repressão a grupos de passinho reacendem debate sobre o uso do espaço público


Os grupos do passinho, movimento essencialmente negro e oriundo das periferias do Recife e Região Metropolitana, têm saído de suas comunidades para ocupar espaços públicos de áreas centrais. O estigma e a repressão que esses jovens vêm sofrendo têm levantado debates acerca das representatividades culturais, mas sobretudo em relação às questões envolvendo o direito à cidade. A discussão, contudo, não é nova. Outros movimentos culturais periféricos, como o brega, o funk e o hip hop, também foram historicamente retaliados e expulsos das zonas nobres das grandes cidades até que ganhassem legitimidade.

Foto: Bruna Costa/DP

A advogada e mestranda pelo Programa de Mestrado em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (MDU-UFPE), Juliane Lima, deu visibilidade acadêmica ao tema pelo que ela tem chamado de Racismo Ambiental. “Historicamente, a população negra tem acesso limitado a determinados espaços da cidade, sobretudo os de lazer. E quando essas pessoas adentram esses lugares, acabam sendo reprimidas, seja pela polícia, que é o poder legitimado da elite e do governo, seja pela exclusão e pelo preconceito velado”, diz a pesquisadora. Um dos exemplos mais latentes dessa discriminação ambiental eram os chamados “rolezinhos”, quando jovens da periferia eram proibidos de frequentar os shoppings da cidade em grupo. “ A cidade é construída pelos negros e depois cabe a eles apenas a periferia, num verdadeiro processo de higienização”, destaca Juliane.

Jaqueline Castro, 22 anos, líder do grupo de passinho As Cacique Oficial, do Complexo de Salgadinho, em Olinda, Região Metropolitana do Recife (RMR), afirma que não se sente bem-vinda quando o movimento frequenta, nos fins de semana, lugares centrais como a Praça do Marco Zero, no Recife Antigo, o Parque 13 de Maio, no bairro da Boa Vista, e o Parque da Jaqueira, uma das regiões mais nobres do Recife. “A polícia fica sempre em cima da gente, arrodeando, manda a gente abaixar o som, como se fôssemos marginais. Nós somos de comunidades. Nós crescemos vendo a favela e sentimos necessidade de conhecer outros espaços públicos e queremos também que quem não conhece a favela possa conhecer nosso trabalho. Passinho é uma expressão genuinamente de resistência”, diz Jaqueline. 

A mestranda em Desenvolvimento Urbano lembra que tanto o 13 de Maio quanto o Marco Zero são espaços de socialização legitimados e é direito de qualquer morador da cidade, seja de áreas nobres seja da periferia, de querer ocupar enquanto cidadão ou enquanto artista. “A cidade que temos acesso é essencialmente a que podemos consumir. Mas não deveria ser assim. E acontece que a polícia usa esse discurso para reprimir a brincadeira de jovens da periferia, quando na verdade deveria estar ali para garantir que essas apresentações aconteçam de forma tranquila tanto para quem vai fazer a disputa do passinho quanto para quem vai assistir”, defende Juliane. 

Para entender a angústia dos grupos que fazem parte do passinho e fazer uma escuta ativa desses jovens, o Inciti chegou a realizar um evento chamado Provocações Urbanas. Para Adelaide, 20 anos, do Recital Boca do Trombone, grupo do bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife, quando os movimentos saem das periferias, onde surgiram, para áreas centrais é uma ação espontânea, mas como historicamente a favela é reprimida nos espaços oficiais da cidade, vinculam-se os movimentos a episódios de brigas e arrastões. 

“Quando marcamos batalhas de MC’s e Encontro de Passinho, a favela toda vai. Existem as pessoas bem intencionadas e outros que se aproveitam da roda, do agrupamento, para fazer o mal. Às vezes é até uma questão de brigas entre comunidades.Mas aí a polícia quando chega espancando, atirando para reprimir, coloca todo mundo que é negro no mesmo bolo. E é aí que se acaba a vida de um menino. Acho que a polícia precisa ter inteligência para saber separar os grupos, dialogar melhor com a comunidade. E os MCs aumentar a conscientização do pessoal da favela. E não reprimir os movimentos no centro da cidade, porque quando acontece é algo bonito de se ver”, ponderou Adelaide.

Juliane Lima lembra ainda que historicamente tudo o que vem da população negra é rejeitado pela sociedade devido ao processo histórico de repressão de todos os componentes da cultura afro, como proibição das religiões, das vestimentas e da capoeira, por exemplo. “Ao longo dos anos, a sociedade internalizou que tudo o que vem do negro está fora do padrão social e existe certa dificuldade em aceitar. A elite branca acredita que o espaço público pertence a ela, designam seus espaços privilegiados e restringem o acesso. A repressão ao passinho é uma versão diferente da gentrificação”, contextualizou a pesquisadora.

Polícia tenta se adaptar a novo fenômeno cultural
Após vários episódios de brigas, arrastões e repressões em eventos no Marco Zero e na Praça 13 de Maio, ambos em áreas centrais do Recife, diversas discussões acerca do papel da força policial na organização desses eventos foram levantadas. Para o secretário municipal de Segurança Urbana, Murilo Cavalcanti, é necessário abrir um diálogo com as lideranças do movimento para entender seus anseios. Ele também se comprometeu a orientar a Guarda Municipal do Recife para que os agentes saibam distinguir os que fazem atos de cultura e os que estão na rua para cometer delinquências.

“Houve muitos avanços. A polícia sabe quem são os delinquentes. A inteligência da Polícia Militar junto com a da Guarda Municipal estão sendo usadas para saber distinguir quem frequenta os encontros para brigar e fazer arrastão e quem vai apenas para se divertir com sua música e sua arte. Para aumentar esse diálogo, temos deixado uma mesa aberta de negociação com as lideranças do movimento de forma a garantir os direitos desses jovens, sem deixar de intervir nos excessos. Mas sabemos que ainda precisamos avançar bastante nas políticas públicas que ofertem cidadania e seja capaz de mediar uma cultura de paz e não violência”, defendeu Murilo. Apesar disso, os MCs El Loco e Shevchenko foram proibidos de gravar um clipe no Parque da Jaqueira, no último mês de fevereiro.

Já a Secretaria de Defesa Social de Pernambuco afirmou que os encontros de passinho têm sido acompanhados pelos batalhões responsáveis pelas áreas onde acontecem, seja na Jaqueira, na Várzea ou Recife Antigo, por exemplo, conforme solicitação dos realizadores, “de modo a garantir a tranquilidade na realização do ato e a segurança, não apenas dos participantes, como das pessoas que transitam nesses locais”. 

“A 'Disputa do Passinho' é uma iniciativa cultural e como tal não há motivo para impedir sua realização. Eventos com grande aglomeração de pessoas, independentemente do tipo de manifestação, recebem atenção da Polícia Militar de Pernambuco, que respeita e apoia todas as manifestações culturais. Somente em casos de furtos, arrastões e brigas provocadas por uma minoria, o efetivo presente realiza intervenções preventivas ou visando restabelecer a ordem e a tranquilidade no ambiente público. Vale frisar que diversos eventos são realizados e, em apenas uma ínfima parte, há registros de distúrbios”, informou em nota a SDS. O órgão afirmou também que está à disposição de realizadores culturais e movimentos sociais para dialogar em prol de uma cultura de paz.




Via: Diário de Pernambuco

Por: Simone Novaes

Simone Novaes

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